2/20/2015

Crônica da saudade.

Se a minha saudade fosse um pássaro 
Estaria todo depenado 
Com uma asa quebrada
Preso a uma gaiola 
Dentro de um circo sujo
Com pessoas imundas
Aplaudindo a maravilha
Que é ver um ser indefeso 
Fazer a alegria momentânea 
De crianças pobres e falidas
De alma e coração
Junto aos seus pais
Também pobres e falidos
De liberdade de expressão
Que sentem-se exatamente como tal pássaro
Presos, sujos, quebrados e doentes
Morrendo todos os dias 
Para animar a vida de alguém 
Que não se importa com eles.
A minha saudade é um pássaro morto.

Como eu descobri que não temos tempo.

Hoje venho contar a história de um rapaz, um amigo de longa data. Alterarei o nome do mesmo para não criar nenhum problema e vou chama-lo de Joseph - porque, segundo ele, era o nome que daria a um filho, caso tivesse um. 

Joseph tinha vinte e dois anos quando tudo começou. Ele foi diagnosticado com um câncer severo de um grau avançado demais para que quimioterapia ou cirurgias resolvessem, então ele só estava vivendo todos os dias que pudesse como se fosse o último, porque, de fato, poderia ser. 


Joseph me ligou em um dia de sol e perguntou o que eu estava fazendo.

- Nada, cara. E você? - Eu quis saber.
- Bom, nada também. - Ele riu um pouco. - Acho que deveríamos fazer algo hoje, o que acha?
- Estou cansado, cara. - Eu suspirei. E, pra ser sincero, eu estava mesmo cansado, tinha acabado de chegar em casa do trabalho, não dormia há dias e só comia porcaria enlatada.
- Ah... - Ele suspirou fundo e ficou em silêncio por um instante. - Tudo bem. Se você melhorar, me liga? Quero muito passar um tempo com você. 
- Claro, cara! Amanhã faremos algo, te prometo. - Eu disse e desliguei. 

Eu desliguei o telefone sem ouvir um tchau, adeus, se cuide ou até logo. Eu simplesmente desliguei a porra do telefone porque eu estava cansado demais para ouvir o que quer que fosse. Eu só desliguei. E eu desliguei porque eu sou egoísta demais pra lidar com os problemas alheios quando eu acho que os meus problemas são os únicos do mundo.


Então, mais tarde, naquele mesmo dia, alguém me ligou. O número era desconhecido - e eu geralmente não atendo esse tipo de ligação - e eu atendi porque algo em mim estava obrigando-me a atender. 


Então um estrondo iniciou-se dentro da minha mente. Era como se eu estivesse dentro de uma caixa preta enorme e aos poucos eu fosse perdendo o ar. Eu não conseguia respirar, tampouco falar algo. Eu me sentia sufocado, amarrado dentro de mim mesmo, preso e engavetado. A garganta arranhava, eu queria gritar mas nada saia. Então veio a vontade de vomitar. Minha mente rodava, rodava, rodava. Eu não conseguia pensar, sentir, andar, respirar. Nada! Eu não conseguia nem chorar.


E do outro lado da linha alguém ainda estava chorando enquanto repetia a frase: "Joseph está morto."


E, como num passe de mágica, eu dormi. Profundamente. 


Quando acordei, eu estava deitado em uma sala branca, com inúmeras pessoas correndo pra lá e pra cá, só conseguia enxergar luzes a me cegar e ouvir os ecos dos sapatos alheios instalando no piso de mármore. 


Ainda não me sentia bem para falar ou levantar. E, juro a vocês: este foi o melhor momento daquele dia. Eu ainda não estava lembrando do que ocorrera, de como cheguei ali ou o que tinha acontecido. E então, em um súbito, eu me lembrei. Eu lembrei de tudo! 


A dor que eu senti no peito era avassaladora. Não há como explicar a alguém como é perder uma pessoa, principalmente se for seu melhor amigo. É difícil pra mim até hoje tentar explicar como dói todas as vezes em que penso em Joseph. 


Por eu ter desmaiado naquela sala de estar do meu apartamento e batido a cabeça, fiquei dois dias fora do ar. O pior não foi acordar com dor, com fraturas ou algo assim, o pior foi acordar e receber a notícia de que eu jamais veria o meu amigo outra vez. E, como se o mundo conspirasse contra mim, eu havia perdido o funeral dele. 


Não preciso lhes contar a parte óbvia dessa história onde eu quebrei inúmeros aparelhos médicos, destruir algumas outras coisas, xinguei meio mundo de pessoas e chorei feito uma criança pequena que acabara de perder-se dos seus pais. 


A dor era e sempre será profunda demais para que eu possa falar a respeito de Joseph sem chorar ou pensar nas coisas que planejávamos juntos e que não tivemos tempo de realizar.


O Joseph se foi. A culpa me invade todos os dias. Sei que não foi minha culpa ele falecer, mas me culpo todos os dias por não ter ido vê-lo aquele dia em que ele me ligou. Segundo a mãe do Joseph, ele tinha alugado uns filmes, comprado umas comidas super legais e deixado Call of Duty a minha espera. E eu sabia que era tudo para mim porque Joseph sempre odiou esse tipo de game. 


Apesar de um fardo horrível que eu suporto diariamente, eu tento ser feliz ao meu modo. Ainda estou aqui, firme e forme. E amanhã, eu vou estar? Eu não posso dizer. Assim como eu não poderia saber que o Joseph partiria naquela noite.


E é com um conselho do fundo da minha alma que termino esta história: o tempo, meus amigos, não existe. Porque, de fato, quem sabe quanto tempo temos? Então, aproveitem. Ame seus amigos, sua família e ame tudo que puder amar, com a maior intensidade que há dentro do teu coração. Apenas ame! E faça mais: aproveite. Aproveite o cair de uma folha da árvore, as gotas de chuva que lambuzam teu rosto, o sol maravilhoso que faz lá fora. Aproveite. Aproveite momentos, pessoas, risadas, lugares. Não passe despercebido e não deixe que nada em sua vida passe despercebido. 


Temos a ignorância de achar que tudo que está aqui estará depois. Que somos eternos, que o tempo é um fato e que ele existe. Não somos eternos, o tempo não existe e eu posso nunca mais escrever outra coisa como esta. E, portanto, és o que peço: viva intensamente e ame como se fosse nunca tivesse sido machucado. 


Se eu pudesse, eu teria amado mais o Joseph enquanto eu tinha tempo. Mas o tempo não existe mais. E nem o Joseph.

2/12/2015

Fique comigo.

Amor, fique comigo esta noite. Fique aqui para que eu meus monstros não apareçam e me aterrorizem hoje à noite. Fique comigo para que eu possa te fazer massagem e poemas de amor, fique para assistirmos ao seu filme preferido pela décima vez na semana. Fique para que eu não precise acordar morrendo de saudades tua, para que eu não precise discar os números no telefone e ouvia a tua voz sendo arruinada pelos quilômetros de distâncias que separam tua casa da minha. Fique comigo esta noite para que eu possa acordar olhando em teus olhos. Fique para eu poder te ver dormir e me deliciar com este evento único no mundo.

Amor, fique comigo esta semana. Fique aqui para eu possa afastar as inquietações da minha mente doentia, para que eu não precise me preocupar com todas as incertezas e dúvidas que sondam nossas vidas. Fique esta semana para pormos o papo em dia, para me contar sobre teus traumas de infância e me falar abertamente sobre todos os teus ex-namorados e o que odiava em cada um deles. Fique aqui esta semana para que possamos ir ao teatro, ao cinema, ao bar com os amigos em comum – ou só com teus amigos. Fique aqui para ouvirmos as brigas dos vizinhos, para irmos comprar pão juntos e fazer cachorro-quente porque estamos preguiçosos demais para fazer uma comida de verdade. Fique esta semana para eu te levar ao teu restaurante favorito, te escrever um poema ou apenas para eu poder te abraçar todo instante que me der vontade, sem eu precisar esperar pelo fim de semana para acontecer.

Amor, fique comigo este mês. Esqueça uma mala de roupas aqui, se precisar. Eu abro espaço no meu armário para você, troco os lençóis e te deixo escolher o que assistir numa terça-feira chuvosa. Fique este mês para irmos ao casamento do meu primo chato lá do outro lado da cidade, para fazermos uma viagem de duas semanas para uma ilha deserta ou para o sítio do meu avô. Fique este mês para eu te levar ao meu lugar favorito na cidade e te mostrar como o pôr do sol é lindo visto daquele lugar. Fique comigo este mês para eu poder te aturar na TPM, para eu te ouvir gritar, para eu acordar ao lado do teu corpo e da tua alma, ambos nus. Fique comigo este mês para eu poder te ajudar a superar todo e qualquer problema que você tiver. Fique este mês para podermos aprender a andar de bicicleta, à cavalo ou sairmos para correr toda manhã. Fique para eu te ensinar a dirigir, a comer de hashi, para você me ensinar a dançar jazz, para assistirmos aquele programa chato de TV que você tanto adora.

Amor, fique comigo este ano. Arrumei um espaço enorme para você no meu armário, na minha cama e na minha vida só para que você ficasse. Fique para me ensinar a fazer lista de compras e a comprar comida de verdade, fique para ver eu me formar e ir a minha formatura. Fique para que eu possa ir a tua formatura, também. Fique este ano para que possamos brigar, discutir, chorar e acabar em beijos e mais beijos. Fique, apenas para eu saber que você quer ficar. Pode bater as portas, mastigar gelo, arranhar os talheres no prato, mexer na minha gaveta, desorganizar meus livros e meus CDs, mas, por favor, fique! Fique este ano para eu saber que é real, que é verdadeiro e que não há volta. Fique este ano para que eu possa aprender a ser mais humilde, verdadeiro e honesto comigo e contigo. Fique para me ensinar lições de moral e de vida. Fique para eu te levar a passeios chatos, a lugares extraordinários, para onde não exista ninguém além de nós, para uma festa sem graça, para um local onde sempre passaremos por coisas boas e ruins, também.


Amor, fique comigo esta vida. Vou te ensinar a pintar o quarto, me ensine a fazer alguma comida sem queimar as panelas. Vamos pagar contas juntos, vamos a eventos separados, vamos fazer reuniões familiares com parentes chatos, faremos amigos estranhos e diferentes juntos. Fique esta vida para geramos filhos. Um, dois, três, ou quantos você quiser. Fique para eu te ver subir no altar e pensar que você é a mulher mais bonita que eu já vi na minha vida. Fique esta vida ao meu lado para envelhecermos juntos, para criamos filhos e vermos nossos netos correndo pelo quintal da casa. Fique esta vida comigo para me ensinar o que é perder, o que é arriscar, o que é sentir e o que é deixar. Fique esta vida para me ensinar a amar. 

Amor, eu vou te deixar.

Cheguei mais cedo do trabalho e pus Arnaldo Antunes pra tocar naquela imensa sala vazia. Gostava dos dias em que chego mais cedo que ela e posso escutar meus discos em paz, comer o que eu quiser sem ela me olhando torto porque faltam poucas horas para o jantar.

Era fim de tarde e a luz entrava pela janela e o sol refletia a sala. Fiquei ali parado durante um bom tempo, sentado no chão na sala e encarando aquela luz que parecia que me cegaria em algum momento. Fiquei imaginando como, às vezes, as pessoas que amamos podem ser como o sol na vida da outra: a energia, a luz, a saúde e, em contrapartida, se muito exposto, pode tornar-se seu pior pesadelo, teu problema, teu câncer, tua insolação, tua morte súbita.

Maria, por anos, fora meu sol. Sempre radiante, sempre iluminando cada lacuna vazia e obscura dentro de mim. Sempre presente para me mandar uma energia extra de positivismo quando eu não o encontrava em mim mesmo ou na vida. Maria tornara-se, há algum tempo, o lado escuro do sol: o lado que machuca, que fere a pele, que deixa marcas e queima.

Eu havia decidido naquela manhã, enquanto conversava com uma grande amiga do escritório, que eu deixaria Maria. Não havia nada que pudesse restaurar o brilho que antes havia naquela mulher e, muito menos, o brilho que cercava a nós dois.

Ela demorou-se a chegar naquele dia. Apesar de tudo, eu me importava muito e ficara preocupado com a demora. Liguei para o celular, que deu direto na caixa-postal. Liguei para o trabalho e ela havia saído há horas. Contabilizei o tempo que levaria do trabalho para casa. Contabilizei alguns contratempos para o gerador daquele atraso, mas nada batia.

Algumas horas depois, Maria entrou pela porta com sacolas do restaurante chinês que ficava no fim da rua. Não me disse uma palavra, nem mesmo perguntou se eu havia jantado ou como havia sido o meu dia, diferente de todos os outros dias durante os cinco anos juntos.

Ela não falou nada e apenas deitou no chão da sala, gemeu um pouco – talvez pelo piso gelado contra suas costas. Fiquei olhando para aquele semblante, para aquela alma em minha frente. Apesar das roupas, ela estava completamente nua para mim. Eu podia enxergar todos os lados e toda a profundidade que cabia naquela mulher.

Ela abriu os olhos subitamente e inclinou-se de lado, tocou a ponta do meu joelho com um dos seus dedinhos gelados e senti a espinha enrijecer.

- Quero o divórcio. – Ela disse calmamente enquanto procurava olhar nos meus olhos.

- Por quê? O que aconteceu? – Eu perguntei, o tom de voz mais alto do que eu gostaria.

- Não existe mais nada que nos prende. Não existe mais amor, paixão, faísca ou evento cósmico entre nós. Nos tornamos colisão, querido! Não quero lembrar de nós com essa dor no peito que sinto agora.

- Você está me deixando, Maria? – A garganta arranhava e cuspia cada palavra amarga da minha boca.

- Sim, querido, eu estou te deixando. E, se possível, estou deixando a pessoa que eu fui contigo para trás, também. Ríspida, rude, fria, conservadora e imatura. Eu espero que possa me perdoar por isso. – Ela disse enquanto se levantava do chão.

- Você quebra meu coração e espera que eu te perdoe por isso? – Eu não estava mais conseguindo controlar emoções ou sensações e tudo que senti foram as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.

- Não precisa me perdoar, é um direito seu. Parti seu coração e essa foi a primeira vez, enquanto você partia o meu coração todos os dias. Não que isso seja uma competição, mas eu te perdoava todos os dias antes de dormir.

- Em que momento eu parti seu coração, Maria? Me diga! – Eu gritava. – Só me diga o que eu fiz de errado, eu tento consertar! Eu juro que eu tento.

- Você partia meu coração toda vez que você preferia sair com teus amigos do que comigo, toda vez que eu trazia sua comida favorita e você não agradecia, toda vez que eu limpava, passava, dobrava e lavava suas roupas e você não via, devia achar que era passe de mágica. – Ela parou e respirou fundo, apanhou uma das minhas mãos e levantou meu rosto para que eu olhasse para ela. – Você partiu meu coração todos os dias que eu dizia que te amava e você não me respondia.

- Mas eu te amo! – Eu disse baixinho, entre soluços.

- Eu também, querido. Eu também te amo, mas, graças a Deus, eu me amo mais.  

2/10/2015

O amor é a nova cólera do século.

Estamos desperdiçando um tempo precioso no mundo. Isso tudo porque alguém nos disse, algum dia, que o amor é prejudicial à saúde e sanidade. Tolos foram aqueles que ouviram e acreditaram no que ouviam. O amor, em minha humilde opinião, é capaz de desfazer guerras e curar câncer. Estão todos ocupados com o insignificante tempo, com o dinheiro que vem e vai sem que possamos parar para conta-lo, com os deveres e afazeres eternos. Nunca nos sobra tempo para sentir de verdade. Quando sentimos, estamos no meio de tanta confusão que acabamos por não entender o que, de fato, estamos sentindo. O amor é uma revolução que ninguém está pronto para deter ou enfrentar. Talvez, para alguns, o amor seja a nova cólera do século. Ou, talvez, uma doença que se espalha pelo ar, sem cura e mortal. Não estamos preparados para sentir todo o peso do amor e é por isso que o ignoramos completamente. Pesado, amargo, de uma delicadeza tão pura que chega a irritar todos os nervos do nosso corpo. Se o amor é a nova doença que se alastra, porque não deixa-lo tomar conta? Talvez o amor nos mate. Talvez o amor nos dê a vida. O amor é a única coisa pela qual conseguimos atravessar os dias e anos sem desistir. Sempre haverá alguém no fim da corda, no fim da linha, do outro lado do muro ou do mundo. Sempre haverá alguém que te trará a cólera do século. Quando chegar, não vai entender. Quando se instalar, não vai resistir. Quando permanecer, desejará que tivesse acontecido há tempos. Guarde o medo no bolso, ponha sua alma pra fora e mantenha o coração em mãos. Respire! Talvez na próxima respiração profunda você seja atingido pela doença do século. Talvez isso te salve a vida. 

O visitante (2)

As mórbidas estrelas que pairam pelo céu negro
Fazem-me enxergar sua silhueta.
Todo dia parece outono desse lado da cidade
Onde eu nunca estou perto o suficiente
Para toca-lo.
E poderia, esta noite, o céu imergir.
E o mundo entrar em guerra
E as estrelas virarem pó
E todos me odiarem
Eu estaria feliz, eu ainda me agarro à esperança.
De que você olha por mim.
Vivendo em um mundo encantado e paralelo
Um mundo onde o amor existe e você é real
Um mundo onde terminamos juntos
Com final feliz clichê e batido.
Deus parece ter se esquecido de mim.
O mundo encantado se dissipa
E entra em constante ruína
Toda vez que ponho a cabeça no travesseiro
E te sonho comigo.
Isto não foi gerado para durar
Nós não poderíamos estar mais condenados
Enquanto eu daria a minha vida por alguém

Alguém seria capaz de tirar a vida de mim.

O visitante

Não é algo fácil
Dói e amarga a alma
Mas quando ele sorri
Eu esqueço os detalhes
Não é algo visível
Esmaga e estraga os dias
Mas quando ele fala
Meus olhos repousam
E ali eu acredito na existência de anjos.
Ele tem uma alma pura
Uma alma que ama algo
Alguém
Que eu nunca vi
Que eu não posso ser
Que eu não posso parar
E é isso que rasga o coração
Essa espera infinita
Por algo que sei que nunca surgirá
Ele é tão bonito por dentro
E me cega a ponto de achar todo o resto
Tolos o suficiente pra não captar minha atenção.
Ao acordar, ele está lá
Ao dormir, ele está aqui.
Dentro de uma parte bonita de mim
Que eu nem sabia da existência
Ele me mostrou que eu possuo algo bom
Quando eu achava que eu era uma tragédia.
Ele é o melhor de mim

Estou tentando ser alguma coisa boa pra ele.

2/01/2015

Em tudo contém, em nada está contida.

Volto a ser criança em um súbito e agora tenho oito anos de idade de novo. Estou sentada em meu beliche, olhando para fora da janela do meu apartamento no terceiro andar e tendo como vista uma floresta bonita. Gosto do verde e do som dos animais tão próximo. Gosto de pensar que sou a única pessoa que se interessa pelas cores e sons que esta floresta produz.

Estou, também, ouvindo minha mãe tagarelar com a vizinha na sala de estar. O assunto não me interessa, mas gosto do som da risada da minha mãe. É estridente e extravagante, mas é meu som favorito no mundo inteiro.

Sinto cheiro de bolo recém-saído do forno e meu estômago apita irritante, quase me arrastando para a cozinha. Controlo-o um pouco e observo mais alguns instantes a inquieta natureza lá fora e aqui dentro. Há duas naturezas nesse mesmo espaço e ninguém se dá conta. Eis meu maior triunfo aos oito anos: perceber que há diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo e que tudo é pura perspectiva/ponto de vista.

Vejo meu caderno de histórias em cima da escravinha. Comecei meu primeiro livro fantasioso aos sete anos, mas não o conclui. (Espero que eu não seja assim nos próximos anos – no entanto, só piorei).

Olho-me no espelho que fica atrás da escrivaninha. Tenho grandes bochechas e os olhos verdes claríssimos. Gosto das bochechas. Gosto dos cabelos soltos e cacheados. Gosto desses dentinhos pequenos. Não me importo com meu peso ou com minha aparência física. Tenho oito anos e estou preocupada se fará sol ou chuva para eu poder descer e ir brincar.

Como bolo com suco de laranja. Conto a minha mãe que gosto da risada dela. Ela sorri e seus olhos brilham, eu podia jurar que derramou uma lágrima, mas o bolo tava bom demais pra que eu prestasse atenção nisso.

Desço pouco depois. Três degraus por vez. Quero muito brincar! Quero correr, me sujar, suar. Encontro meus amiguinhos brincando em algum canto do condomínio. Nunca soube saudar ninguém e por isso sempre sento e olho pra todos até que alguém sugira uma brincadeira. Sorrio fácil, sempre fui assim. Levanto e começo a correr. Eu não consigo me lembrar de um dia melhor que um dia de sol aos oito anos de idade.

Estou correndo, suando, com os cabelos embaraçados e com as bochechas bastante avermelhadas. O sol não me incomoda e eu não preciso de nada além de um copo de água.

Os dias mais difíceis são os dias que não posso descer para brincar. Os dias de chuva. Os dias de prova. Os dias que amiguinhos chegaram tarde e ficaram de castigo. Os dias que eu cheguei tarde e fiquei de castigo. Esses eram maus dias.

Do outro lado, quase sempre há sol e sorrisos. Há gargalhadas por motivo algum e há aventuras pela floresta que posso ver pela minha janela. Fico pensando, nesses dias de aventuras, se minha mamãe poderia me ver pela janela. Brigaria comigo, eu sei, mas imitaria o som de algum animal que eu ouvi e ela sorriria. Os olhos encheriam de lágrimas, como no dia em que disse gostar da sua risada. Ela me perdoaria. Ela me perdoaria porque sabe que eu sempre fui da natureza.

Será que ela consegue ver minhas perspectiva daquela janela? O mundo lá dentro e o mundo aqui fora? É diferente pra mim, agora, quando estou aqui. Não consigo imaginar o que está acontecendo lá. Será que ela consegue imaginar o que está acontecendo aqui?


Há natureza. A natureza humana e a natureza espiritual. Sinto que sou e estou com um pé em cada uma. Sou parte do todo e ao todo sou parte. Sou isso e sou aquilo. O aqui e o lá. O agora e o depois. Sou duas partes de uma mesma história. Sou duas histórias de partes diferentes. E aos oito anos de idade isso é tudo no qual eu acredito: que eu sou infinito. 

A bailarina.


Ouve-se os pássaros assobiarem suas tristes canções pela janela do vigésimo sétimo apartamento da Avenida Boulevard, a mesma Avenida que cantada em uma antiga canção onde dizia ser a Avenida dos Sonhos Destruídos.

Ela abre as cortinas e sente o primeiro raio de sol aquecer seu rosto. De olhos fechados, sente a luz adentrar teu ser. A luz do sol irradiante ilumina o apartamento vazio, onde os pássaros já não mais assobiam.

Alguém estar a tocar uma canção de Ludovico Einaudi no apartamento da frente, ela escuta com atenção enquanto desliza os pequenos pés arrebentados pelo piso de madeira.

O cheiro de café de algum apartamento vizinho a desperta do súbito que é ouvir aquele piano sendo tocado. Ela precisa encarar mais um dia de sua dura e triste realidade.

Aquece-se com um casaco de lã quando o collant não o faz, como hoje. Apesar do sol imerso lá fora, o dia é frio. Em suas mãos nada mais que sua sapatilha trinta e cinco. Em seus olhos, a dor. Há dor!

Alguns passos longos e apressados e em poucos minutos encontra-se no estúdio. Espelhos e mais espelhos. Frente a frente com seu monstro de criação. Frente a frente com a única pessoa que pode destruí-la: ela mesma.

Plié, tendu, jeté, fondu e frappé*. Repete, repete, repete. Cai, levanta, gira, roda, faz de novo. Repete, repete, repete. Cai, cai, cai. Dor! Levanta, gira, roda, faz de novo. Uma sequência interminável.

Levanta-se, olha-se, reflete-se. Sente-se! Pela primeira vez, de verdade, sente-se. Sorri bonito e aprofunda seus olhos no reflexo do espelho. A dor existe e é constante, mas ela continua.


Ela sempre continua.  




(*Nomes de passos de Ballet.)

Guerra de corações partidos.

É só um coração partido
E não sua alma em cacos.
É só um coração partido
E não sua vida devastada.
É só um coração partido
E não o mundo desabando.
É só um coração partido
E não você em cima de uma cama de hospital.
É só um coração partido
E não seu futuro destruído.
É só um coração partido
E não seus sonhos esmagados.
É só um coração partido
E não seus desejos virando pó.
É só um coração partido
Mas parece que é, também,
A separação de dois continentes.
Mas parece, também, um terremoto.
Um tsunami, um vulcão em erupção.
A Guerra na Síria, na Líbia.
A Terceira Guerra Mundial dentro de ti.
São todas as catástrofes naturais
E humanas de uma só vez;
Mas é só um coração partido.