Cheguei mais cedo do trabalho e pus Arnaldo Antunes pra
tocar naquela imensa sala vazia. Gostava dos dias em que chego mais cedo que ela
e posso escutar meus discos em paz, comer o que eu quiser sem ela me olhando
torto porque faltam poucas horas para o jantar.
Era fim de tarde e a luz entrava pela janela e o sol
refletia a sala. Fiquei ali parado durante um bom tempo, sentado no chão na
sala e encarando aquela luz que parecia que me cegaria em algum momento. Fiquei
imaginando como, às vezes, as pessoas que amamos podem ser como o sol na vida
da outra: a energia, a luz, a saúde e, em contrapartida, se muito exposto, pode
tornar-se seu pior pesadelo, teu problema, teu câncer, tua insolação, tua morte
súbita.
Maria, por anos, fora meu sol. Sempre radiante, sempre
iluminando cada lacuna vazia e obscura dentro de mim. Sempre presente para me
mandar uma energia extra de positivismo quando eu não o encontrava em mim mesmo
ou na vida. Maria tornara-se, há algum tempo, o lado escuro do sol: o lado que
machuca, que fere a pele, que deixa marcas e queima.
Eu havia decidido naquela manhã, enquanto conversava com
uma grande amiga do escritório, que eu deixaria Maria. Não havia nada que
pudesse restaurar o brilho que antes havia naquela mulher e, muito menos, o
brilho que cercava a nós dois.
Ela demorou-se a chegar naquele dia. Apesar de tudo, eu
me importava muito e ficara preocupado com a demora. Liguei para o celular, que
deu direto na caixa-postal. Liguei para o trabalho e ela havia saído há horas.
Contabilizei o tempo que levaria do trabalho para casa. Contabilizei alguns
contratempos para o gerador daquele atraso, mas nada batia.
Algumas horas depois, Maria entrou pela porta com sacolas
do restaurante chinês que ficava no fim da rua. Não me disse uma palavra, nem
mesmo perguntou se eu havia jantado ou como havia sido o meu dia, diferente de
todos os outros dias durante os cinco anos juntos.
Ela não falou nada e apenas deitou no chão da sala, gemeu
um pouco – talvez pelo piso gelado contra suas costas. Fiquei olhando para
aquele semblante, para aquela alma em minha frente. Apesar das roupas, ela
estava completamente nua para mim. Eu podia enxergar todos os lados e toda a
profundidade que cabia naquela mulher.
Ela abriu os olhos subitamente e inclinou-se de lado,
tocou a ponta do meu joelho com um dos seus dedinhos gelados e senti a espinha enrijecer.
- Quero o divórcio. – Ela disse calmamente enquanto
procurava olhar nos meus olhos.
- Por quê? O que aconteceu? – Eu perguntei, o tom de voz
mais alto do que eu gostaria.
- Não existe mais nada que nos prende. Não existe mais
amor, paixão, faísca ou evento cósmico entre nós. Nos tornamos colisão,
querido! Não quero lembrar de nós com essa dor no peito que sinto agora.
- Você está me deixando, Maria? – A garganta arranhava e
cuspia cada palavra amarga da minha boca.
- Sim, querido, eu estou te deixando. E, se possível,
estou deixando a pessoa que eu fui contigo para trás, também. Ríspida, rude,
fria, conservadora e imatura. Eu espero que possa me perdoar por isso. – Ela disse
enquanto se levantava do chão.
- Você quebra meu coração e espera que eu te perdoe por
isso? – Eu não estava mais conseguindo controlar emoções ou sensações e tudo
que senti foram as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
- Não precisa me perdoar, é um direito seu. Parti seu
coração e essa foi a primeira vez, enquanto você partia o meu coração todos os
dias. Não que isso seja uma competição, mas eu te perdoava todos os dias antes
de dormir.
- Em que momento eu parti seu coração, Maria? Me diga! –
Eu gritava. – Só me diga o que eu fiz de errado, eu tento consertar! Eu juro
que eu tento.
- Você partia meu coração toda vez que você preferia sair
com teus amigos do que comigo, toda vez que eu trazia sua comida favorita e
você não agradecia, toda vez que eu limpava, passava, dobrava e lavava suas
roupas e você não via, devia achar que era passe de mágica. – Ela parou e
respirou fundo, apanhou uma das minhas mãos e levantou meu rosto para que eu
olhasse para ela. – Você partiu meu coração todos os dias que eu dizia que te
amava e você não me respondia.
- Mas eu te amo! – Eu disse baixinho, entre soluços.
- Eu também, querido. Eu também te amo, mas, graças a
Deus, eu me amo mais.
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