1/23/2013

A epidemia (Parte I)


Eu sou um cupido. Minha função na Terra é prática e única: desci para juntar o máximo de corações possíveis, uns aos outros. Não faço por ganância ou qualquer outro motivo, eu não ganho nada além de novas penas brilhantes a cada novo amanhecer. Meu trabalho tem sido fácil, de uma maneira não convencional. Tenho estado em todas as vielas, de todas as cidades, de todos os países, de todas as ruas. A cada esquina que vejo duas pessoas, lanço minha pequena flecha invisível, aos olhos humanos, e os acerto.

É instantâneo o efeito que aquela pequena flecha faz. E em um piscar de olhos seus corações, antes vazios, se enchem de amor para dar um ao outro. Falando dessa maneira, visualizando dessa forma, tudo parece perfeitamente normal e até mesmo bom, mas não é. Não pra mim! Sou um cupido, mas já fui humano. Tudo que me restara é um corpo amaldiçoado. Estou trancado em um corpo que possui asas. Não sinto frio, fome ou dor. Eu não sinto exatamente nada, inclusive o toque.

Enquanto estou a trabalho, enquanto estou procurando insaciavelmente por corações vazios, vejo que não há nada que eu possa fazer por mim. Não sei quando ou como comecei essa missão, a de ser um anjo-cupido, mas sei que agora pago por todos os corações que já parti um dia, pago por todo o amor que me deram e eu não retribuir, pago, todos os dias, pelo afago que me deram e eu não contribui. Como disse: eu não posso sentir. Amor está incluído. Eu não posso amar. Ou, se posso, os arcanjos esqueceram de me avisar.

Sou oco e estou a beira de um abismo. Alguns seres humanos preferiam estar em meu lugar, não para prestarem serviços amorosos, mas, para não poderem sentir absolutamente nada. Eles não podem me ver, ouvir ou sentir minha presença. Trabalho no escuro, onde olhos e corações humanos não sabem, teoricamente, da minha existência. Mas eu existo. E estou lá, a cada nova esquina em que duas pessoas, mesmo que desconhecidas, estiverem cruzando o destino da outra. Eu cruzo o destino de todos e ninguém cruza o meu.

A única coisa que eu posso sentir é uma pequena ardência se alastrando pelos meus pulmões todas as vezes em que acerto uma flecha naquelas pessoas. Em termos humanos, chama-se inveja. Sinto inveja do que eles podem sentir. Sinto inveja que eles possam sentir. Ter um coração e usá-lo para amar um outro alguém. Estive desejando isso desde minha criação: sentir, qualquer coisa que fosse, apenas mais uma vez.

Ainda posso chorar, mesmo que eu não saiba o motivo correto para o ato. E choro, sentado em frente a uma pequena estação de trem. Penso como seria se eu não existisse, para os humanos. Eles saberiam amar uns aos outros sem a força angelical dos céus? Eles seriam capazes de se deixarem sentir, sem medo ou ignorância, ou seriam como eu fui quando humano: anti-sentimental?

Vejo uma multidão de gente a minha frente, ao meu redor, e vejo a pressa nos olhos de cada um. Atrasados para irem estudar, trabalhar, viver. Mas, com um pouco de força de vontade, consigo ver em pequenos pares de olhos espalhados por aqui a urgência de encontrar afeto, de encontrar um amor. A falta que o amor deve fazer para esses, com certeza, os machucam.

Não havia tomado decisão tão idiota há muito tempo, então, peguei uma das flechas que eu guardava e atirei-a para cima, deixando que o destino pudesse se encarregar de juntar dois corações, apenas com um pouco da minha interferência. Não olhei para o alto mas, por um breve instante, achei que todos a minha volta pudessem ver a flecha subindo e descendo em questão de segundos porque todos os olhares pairaram sobre mim.

Eu não sentia dor. Aquilo não era, nem de longe, algo parecido com dor. Era uma ardência, como a de antes, mas agora queimava todos os meus órgãos pouco a pouco. Me senti intoxicado, senti que estava sob radiação. Senti meu corpo pegar fogo. Eu não estava prestando atenção àquilo tudo mas agora eu dera conta: eu estava sentindo, outra vez. A flecha fez um trabalho que eu jamais achei que pudesse fazer: me trazer de volta a vida.

Quando eu abri os olhos e a luz cintilante me cegou por alguns instantes, vi um rosto familiar pairar diante de mim. Eu não o conhecia, não sabia detalhe algum daquele rosto mas tinha certeza de que eu já o havia visto, nos meus sonhos talvez. Nos meus sonhos humanos. Anjos não dormem. Então, quando me acostumei a aquela luz, abri meu olhos com toda a força. Analisei, por um momento, o estrago que a flecha havia feito em meu corpo, mas nada encontrei. Não havia vestígio dela por ali. E eu sentia que as outras, que estavam em minhas costas, haviam sumido também. Não havia sangue sob minha roupa branca, nem dor espalhando-se por ali.

Havia centenas de olhares curiosos procurando saber como eu havia parado ali e o que ocorrera comigo. Ouvi algumas pessoas dizendo que eu não estava ali há alguns segundos atrás, outros gargalhavam pela frase idiota. “É claro que ele estava ali, se não, como poderia ter sido atingido pelo raio?”. Um raio. Pensei enquanto levantava do chão. O rosto familiar, outra vez, pairou sobre mim e um rubor percorreu todo o meu rosto. Eu havia entendido: eu me apaixonei. 

1/21/2013

Amor veraneio.


Eu olhava para aqueles lábios ressecados pelo sol, aquela pele quase morena mas mais avermelhada do que morena e o cabelo preto caindo nos olhos. Profundos olhos, inclusive. De um tom verde água, como o mar que se estendia no horizonte atrás dele.

- Talvez devêssemos parar de nós encontrar. – Eu disse, enquanto um nó na garganta se formava.

Ele hesitou por um momento antes que as palavras chegassem a ponta da sua língua. Sua decepção era visível mas sua expressão confusa denunciava ainda mais.

- Não estou pronto para deixá-la ir. Veja – ele apontou para o mar, inclinando sobre o calcanhar e girando o suficiente para que também pudesse ver – aquilo! Não é lindo? Veja o mar, Ana. Eu sou como o mar em um dia de sol, quando estou com você. – Ele hesitou antes de continuar, molhou os lábios com a língua e segurou meu queixo, olhando-me nos olhos – Eu não sei ser eu sem você. Se me deixar, jamais voltarei a ser verão. Estarei confinado a ser tempestade para sempre. Sem você, sou inverno.

Aquelas palavras pareciam atingir meu coração antes mesmo que chegasse aos ouvidos. Senti uma punhalada no peito, como se fosse golpeada por um machado. Minhas pernas tremiam, minhas mãos involuntariamente procuravam qualquer ponto de concentração. Quase vacilei quando levantei a mão para tocar seu rosto, mas ela caiu no ar e a gravidade fez o papel de fazê-la voltar ao lugar.

- Thomas – comecei. – Isso, a gente, não é algo que durará mais que algumas semanas. O verão está próximo do fim. Voltarei para casa, você também. Talvez nos veremos no próximo verão, ou não. Como saberemos? Como ficaremos? Sejamos realistas: não há futuro. – As palavras saiam mais rápido do que eu esperava, a minha voz tinha um tom trêmulo e quase afável. Meu tom de voz pedia desculpa por si só.

Thomas me olhou nos olhos e eu sabia que ele não queria ir embora, mas seu orgulho fez o trabalho que minhas palavras quase protestaram: ele se afastou. E pela ultima vez a mão dele pairou sobre meu rosto, segurando-a com as duas mãos, Thomas me deu um beijo demorado na testa. Eu quase pude sentir o gosto de lágrima que caia em disparada dos seus olhos, que agora eram de um tom cinza claro. Como o céu em um dia de inverno. Pensei no que ele dissera a pouco, Sem você, sou inverno., e eu vi em seus olhos que não mentira. Ele se transformaria em cinza, em pó, ao longo do tempo. Algo frio e duro. Algo congelado por dentro. Minha linha de raciocínio não fez seu papel, soltei meus braços por cima do seu ombro e deixei que o meu corpo falasse por si só. O abracei com toda a força que meu corpo conseguia transportar. Senti que ele também fazia o mesmo, caso contrário eu não teria motivo algum para tentar respirar mais depressa.

Thomas me soltou. Olhou meus olhos, pela ultima vez e se virou. Caminhando pela areia da praia, calmamente, vi todo um amor se desfazer em frente ao que chamamos de paraíso. Fitei o mar por um momento, percebi que o tempo mudara em pouco tempo. O mar agora tinha uma cor morta, nada convidativa para um banho. O céu, também, transformou-se: passou para um azul quase acinzentado, sob pequenas camadas de nuvens espalhadas pelo céu.
Ele não se virou em nenhum momento enquanto continuava sua caminhada paralela a minha. Tive vontade de correr, de gritar, chamar seu nome e pedir perdão. Quis isso tanto mas meu coração falhou, minha voz falhou! Eu abria a boca mas nenhuma palavra saia. 

Sentei na areia, com aquele palco dramático a minha volta, envolvendo meus braços sob minhas pernas que apertavam contra o peito e afundei minha cabeça ali. Chorava, com a intenção de que isso pudesse lavar minha alma. Nada feito! Quando mais chorava, mais vontade eu tinha de chorar pra sempre. Eu o perdera, estava ciente, fora a culpada e não fiz nada para mudar isso. Eu merecia esse castigo. Eu merecia passar o dia chorando, e, porque não, o ano inteiro talvez?
Senti a areia se afundar ao meu lado, foi quando olhei para baixo e depois para cima. Lá estava ele: lindo, maravilhoso, forte e quase esboçava um sorriso. Thomas voltara. E eu não sabia o porque exatamente.

- Não vou embora. Não vou deixar meu orgulho ou o seu fazer com que fiquemos longe um do outro. Eu a amo, Ana. Não entende? Não posso, não quero e não vou viver sem você. Se não entende isso, bem, temos um pequeno problema. – Ele sorriu. – Eu não vou a lugar algum, exceto se você vier comigo.

Eu sorri. Não precisava de palavras. Senti as lágrimas secarem mais rápido do que foram derramadas, por conta do vento que soprava. O céu abriu, outra vez. E o mar voltou à aquela cor quase cristalina. Eu sorri pensando em como ele podia mudar completamente o meu dia. Eu sorri pensando em como ele podia mudar completamente a minha vida. E ele mudou. 

1/09/2013

"A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos"


Mas, se fosse possível, eu queria te fazer entender sobre tudo que carrego no meu peito. Eu queria te contar sobre como sempre parece primavera quando você aparece e como todo o resto, dentro de mim, parece florido. 

Queria te mostrar como pode ser bonito as estrelas pegando o oeste da cidade, onde nada funciona, onde ninguém se habilita ir, onde poderia ser apenas nós dois por algum tempo. 

Eu queria, mesmo, que você ligasse o rádio um dia e aquela musica que você lembra de mim tocasse e você decidisse me ligar nem que fosse pra me dar um boa noite. 

Eu posso te dizer o quão bonito é a cidade inteira iluminada apenas pela lua mas não adiantaria, ela continuaria sendo a mesma cidade sem graça se não fosse você ao lado para iluminar não só o meu ponto de vista sob a cidade mas o meu coração, também. 

Eu posso te falar sobre como é sempre primavera no meu coração, como tudo aqui é florido e vibra quando você surge. Eu posso, também, te contar que se o amor fosse descrito em cores, eu o descreveria da mesma cor dos seus olhos castanho escuro. 

Eu posso te levar para o oeste, onde nada existe e ninguém se habilita ir, seria o nosso lugar de fuga e, quem sabe, o nosso plano de fuga. Eu posso sorrir pra você sem pensar nas consequências do que aquilo pode vir a ser futuramente. Eu posso ama-lo de todo o meu coração sem medo de que um dia você quebre os meus planos, sonhos ou coração. Estou pronta pra te falar sobre tudo isso. 

Mas por enquanto você iluminar o modo como eu vejo as coisas mais bonitas por ter você ao lado me parece mais certo do que qualquer palavra, do que qualquer declaração. É sobre pupilas dilatadas e corações acelerados, não sobre palavras e sons efusivos. É sobre o amor e a sua maneira mais bonita de ser interpretada. 

É sobre o castanho escuro dos seus olhos. 

Título sobre o texto: é um trecho da música de Renato Russo (Legião Urbana), Tempos Perdidos e não meu.

Temporada do frio.


Outro amanhecer ensolarado na cidade mas o meu peito continua coberto pela neve, pela camada de gelo e pelo frio trêmulo que você deixou enquanto passava uma pequena temporada habitando meu coração.

Não vejo outra saída. Continuo acordando na mesma cidade, continuo a mesma pessoa mas a dor é um tanto mais violenta a cada novo dia. Como se o tempo não fosse curar nada. Como se o tempo que passasse, a cada maldita hora que passara, fizesse de você um assombro eterno pra minha mente.

Não choro mais. Meu coração quebrado e gelado não permite que eu emita emoção alguma. Não há vontade de chorar, de sorrir, de sofrer. Ninguém reconhece minhas expressões, ninguém mais sabe como lidar comigo. Não sei mais quem sou ou quem me tornei depois de você.

Soa doentio quando alguém me ouve resmungar pelos cantos do apartamento o quanto é dolorido. O quanto de mim você levou, o pouco de mim que ficou.

Amanhã amanhecerá outra vez. Será só mais um dia normal para todo o resto da humanidade. Mais um dia doloroso e assombrado com lembranças tuas, pra mim. Haverá um tempo de paz, eu sei que haverá. É do ser humano esquecer e deixar pra lá, por mais que doa e por mais que demore. É tempo! E o tempo está passando.

Amanhã doerá, talvez depois de amanhã também. Daqui há alguns meses, quem sabe, anos, ainda doerá. Mas em algum tempo haverá de passar. Eu não preciso desse gelo no meu coração, eu não preciso de você nas minhas lembranças. Eu só preciso de tempo e esse, eu sei, está a meu favor. 

1/08/2013

O amanhã incerto.


Estou incompreendido, irritado, pensativo e levemente embriagado. Já passam das dez da noite, ainda é quarta-feira e preciso levantar às cinco e meia da manhã para o trabalho incrivelmente ridículo do qual tenho me comprometido incansavelmente há seis anos.

Apesar de sozinho na mesa de um bar, estou rodeado de pessoas bêbadas e felizes. Ou, quem sabe, infelizes como eu mas com uma vida social a ser mantida e não querem demonstrar infelicidade.
Andava sóbrio há anos. Não fumava mais, também. Hoje é o terceiro maço de cigarro que fumo. Quinto copo de cerveja. Segunda garrafa de whisky. Antes, antes de hoje, tudo era ponderado e eu havia aceitado isso na vida. Esse “quase”, esse “e se”. Mas não mais.

Elena me deixou. Suspiro tão fundo quando penso nisso que às vezes acho que gastei todo o ar que meus pulmões podem estocar. Penso nela, agora, como injustificável. Penso em mim como um completo babaca. Estou aqui, sentado na mesa de um bar como não fazia há sete anos, desde que eu e Elena decidimos concretizar nosso relacionamento, me sentindo uma péssima pessoa, me sentindo o pior cara do mundo, me olhando por dentro e me sentindo um horrível marido. Agora, um horrível ex-marido.
Era como se, naquele momento, no momento em que ela decidiu ir embora de casa, ela fosse a única coisa que importava para si própria. Não pensou em nada, apenas fez as malas e partiu com outro cara. Um mais jovem, um aventureiro que não fica atrás de uma mesa trabalhando incontrolavelmente para pagar o colégio das crianças, o seguro do carro, a hipoteca, as compras do mês e todas as responsabilidades de gente grande. Ela nem se quer pensou em nossos filhos. Ela não pensou em mim.

Doeu. Dói. E vai doer por muito tempo. Sei disso. Meus grandes e velhos amigos, amigos esses que já estão afastados de mim por conta do meu tempo infindável atrás daquela merda de mesa do escritório, por conta da preocupação e trabalho que as crianças me davam, por causa da Elena que sempre disse que amigos solteiros são péssimas influencias, eles me alertaram disso antes que eu se quer imaginasse que isso pudesse acontecer um dia. Grandes doutores que eu não dei ouvidos. Agora estou aqui, sozinho, por que Elena me deixou, não me toleraria amanhã se eu trouxesse as crianças e todos os meus amigos me acham um mala de palito.

É incrível como isso dói, como a gente por estar sozinho bebendo num bar com a pior cara que existe, parecendo um trapo abandonado é indiferente para os felizes. Acho que a infelicidade é uma doença contagiosa. Se eu estou infeliz e alguém se aproxima automaticamente se contagiará com a doença da infelicidade. Mas não, nem sempre. Eu só precisava de um ombro amigo essa noite. Na verdade, qualquer ombro serviria. Eu só quero chorar, cara! Só isso.

Penso que preciso de um psicólogo mas pagar pra ser ouvido é algo do qual não sou a favor. Acho que amigos existem pra isso ou seus pais. Pena que os meus não moram por perto. E não vou ligar esse horário. Está tarde, ficarão preocupados e eu vou começar a chorar feito uma criança que perdeu seu cachorro. Não vai ser bom pra mim.

Elena, a cada copo que eu termino de qualquer bebida, me aparece sorrindo e feliz, dizendo que desejou muito que déssemos certo mas que achou alguém que a faz feliz, de verdade. Não perguntou como eu me sentia, apenas deixou claro que essa decisão já havia sido pensada antes. Pensou em porra nenhuma. Biscate! Me largou. Largou os filhos. Como ela pôde ser tão baixa? Como eu pude me apaixonar, me envolver e casar com uma mulher que me trocou pelo primeiro playboy riquinho que gosta de uma coroa pra se divertir? Desejo que ele fique impotente. Que ela engravide. Que ele não assuma. Que ele largue ela por uma outra coroa ou por uma riquinha como ele e me devolva o que era meu! Puta, Elena. Elena, puta. Nenhum adjetivo ou qualidade me vem a cabeça sobre ela. Apenas puta. Quero gritar pra que todos no bar saibam que eu fui casado com a pior espécie de ser humano que eu já estive por perto.
Eu poderia ter casado com a Ana. Aquela menina da faculdade em que namorei. Ela era crente, ia a igreja. Da ultima vez que a vi havia se casado há dez anos, tinha três filhos e um cachorro! Ela tem um cachorro! Eu nunca tive um cachorro. Elena era alérgica a pêlo. Como pode, um homem da minha personalidade, ter filhos antes de ter cachorros? Então, decido uma coisa por mim depois que Elena partira: terei cachorro. Dois cachorros. Um pra mim e um para as crianças.

Volto a pensar em Elena. Acho que estou na décima cerveja. Minha visão está levemente embaçada. Olho no relógio que fica em cima do balcão, passam das duas. A cerveja está quente, fiquei muito tempo pensando nela e esqueci da cerveja. Maldita seja que até longe consegue me fazer mais infeliz ainda. Cerveja quente é uma merda.

Penso em como ela está feliz agora. Em como deve está se divertido. Em alguma praia paradisíaca com aquele riquinho. Imagino ele loiro e bronzeado, rindo e fazendo massagem nela. Tomando vodca com a minha mulher. A mulher que quase me fez desmaiar quando apertou meu braço na hora do parto, a que eu vi ter crises de TPM e agüentei calado, a que eu tive que aturar reclamando das crianças, da comida, da casa, de mim e de tudo.

Elena era assim. Nunca nada estava bom. Nada! Até nos pequenos projetos que eu me sentia especial por tê-lo feito ela me menosprezava. Agora, depois que ela me deixou, vi que nunca me amei depois que passei a amá-la. Era incrível as coisas que eu fazia para agradá-la e esquecia de me agradar, também. Deixava de ver futebol pra assistir novela com ela, mesmo que eu não entendesse nada do que se passava. Eu fazia brigadeiro pra ela quando tinha crises emocionais. Eu nunca a trai ou menti. Nunca fui pro bar com meus amigos sem que ela soubesse e quando eu ia, brigávamos.

Decidi que Elena me fazia mal. Não era bem ela, exatamente. Eu me esforçava tanto pra agradar aquela mulher que eu esquecia da minha existência. Eu já não fazia nada por mim há anos. Era tudo pra ela e por ela. O trabalho, as crianças, a casa, o fato de eu não ter um cachorro. Tudo sempre foi por ela, embora eu tivesse uma parcela de culpa por sempre fazer sem pestanejar.

Decido, enfim, pedir a ultima cerveja. Vejo que agora o bar está realmente vazio, exceto por uma moça loira sentada ao lado da minha mesa. Nossos olhos se encontraram e ela sorri, aceno com a cabeça e um sorriso de canto-de-boca. Minha bebedeira me permite isso. Aliás, eu posso isso. Porque não? Eu estou solteiro! Olho pra moça loira, de novo, e ela está sozinha, me olhando outra vez e então ri pra mim e vem na minha direção.

Um enfarte ou um ataque? Ainda não decide o que terei por ver uma mulher tão bonita assim sorrindo e vindo em minha direção. Imagino que ela vem perguntar as horas, mas tem um relógio imenso em cima do balcão. Não é isso. Está perdida! Vem pedir informação. Ela chega e me dá mais um sorriso. Minha aliança em cima da mesa a faz recuar.

- Não estou atrapalhando, estou? – Pergunta  a moça loira.
- Não, sente-se! – Ofereço a cadeira solitária para ela.
- Casado? – Ela sorri, esperando uma negação.
- Divorciado. – Dou de ombros.
- Solitário, então? –
- Sim, um pouco. – Arquejo. – Na verdade, muito!
- Não mais. Não hoje! – Ela sorri.

E pela primeira vez na noite eu tive o que chamamos de fé no amanhã. No novo, no desconhecido. E, pela primeira vez, na noite eu pensei em um sorriso que não era o de Elena. Era o dela. Se foi no dia seguinte. Não deixou telefone, nem endereço, muito menos o nome. Se era de programa, não cobrou. Se gostou de mim, vai voltar. Deixou um beijo com a marca de batom vermelho no espelho do meu banheiro com as inicias “A.M”. E eu sabia... era hora de eu viver de novo. Sem Elena.