11/17/2014

Oficina do Diabo.

Você não precisa saber meu nome. Nem de onde eu venho ou quantos anos eu tenho. Não precisa perguntar, ao fim desse texto, se eu ainda estou respirando ou se eu ficarei bem. Mas quero que me leia, me leia com toda a atenção possível.

Nós estamos no inferno. Todos nós somos nossos próprios deuses e diabos. Cuidado, tenha extremo cuidado, com o qual dessas divindades você se identifica mais.

*

Era sábado. Ou talvez já fosse Domingo. E tudo que eu sentia era minha cabeça doendo e o mundo girava. Todo o meu corpo estava dolorido e quando eu abri os olhos pude ver os hematomas espalhados pelos braços e pernas. Minha roupa estava um trapo, havia mais buracos do que tecido. E do outro lado da rua havia a cidade como eu sempre conheci: morta.

Aqui estou eu, em uma viela, encostado na parede fria e no chão sujo de uma cidade triste e abandonada. Provavelmente estou sangrando mas eu não sinto nenhuma dor referente a isso. A minha dor é interna, é psicológica. A minha dor afeta o meu coração e a minha alma.

Pra você entender o que aconteceu, explicarei resumidamente o que se passou para eu chegar a esse lado obscuro de mim mesmo: eu fui derrotado por aqueles que me chamavam de irmãos. Eles disseram: vai nessa, é só uma dose. Fui nessa, era só uma dose. Uma dose que nunca chegou ao fim.

Quanto mais você tem, mais você quer. Quanto mais louco você está, mais louco você quer ficar. E foi assim comigo também. Por dias, após fugir de casa, vaguei pelas sombras da noite atrás de mais uma dose. Aquela única e última dose, lembra? Mas nunca era a única. Nunca era a última.

Quando você acha que vai morrer, quando tudo a sua volta desmorona como uma erosão, você pensa que está livre e que tudo chegará ao fim. Mas o maldito fim nunca chega! E dia após dia eu esperava o meu fim. Entre uma dose ou outra, eu esperava algum dos meus órgãos pararem. Eu esperava que minha mente se desligasse. Eu esperava que meu coração simplesmente parasse.

Meus irmãos se foram. Alguns estão atrás das grades, alguns estão em alguma viela – provavelmente mortos – e eu fui o único que fiquei para lhes contar essa trágica história. Se eu pudesse desfazer os meus erros e voltar no tempo, eu estaria agora comendo a comida caseira da minha mãe, jogando futebol em algum time da rua e trabalhando no verão. Mas eu estou drogado, caído, abatido e sem vestígio algum de uma alma.

Tudo em mim está doendo. Absolutamente tudo. Eis que me pego pensando no que eu poderia ter tido e sido, antes de tudo isso findar em minha mente. Sinto uma vontade imensa de chutar a porra da bunda do mundo. Essas merdas não deveriam está aí, não deveriam deixa-las assim para que qualquer um pudesse usufruir. Vinte reais e você consegue ficar louco. Loucura essa que você procura não deixar terminar. A loucura precisa está presente para que tudo dentro de mim tenha sentido.

Quando usei pela primeira vez, eu achei ter encontrado o paraíso. A sensação foi como se eu estivesse correndo por um jardim infinito de tulipas roxas e azuis. Eu sentia a brisa da manhã bater no meu rosto. Não havia nenhuma sensação ruim. A dor, a culpa, a derrota... tudo isso acabou naquele momento. E eu nunca mais quis sentir a realidade outra vez.

No começo, era mesmo o paraíso. A sensação era sempre a mesma mas nunca durava o suficiente. Era sempre nos finais de semana. E, depois, por você não ter absolutamente nada pra fazer, você passa a usar nos dias facultativos também. Então, quando eu menos esperei, eu estava usando doze doses por dia. De Domingo a Domingo. Sem nenhum dia pulado. Eu sentia que era aquilo que eu precisava. Era aquilo que faria bem pra mim.

Mas sempre há um erro na matrix. Sempre há um pedaço do paraíso que não é possível alcançar. Como num sonho muito bom que você tem e alguém simplesmente te acorda e você percebe a dura realidade batendo na tua cara. A grana tinha acabado e eu precisava do meu paraíso.

Fui atrás de tudo que eu podia pra arranjar mais uma dose. Roubei de crianças a velhotes, tudo que tinha um valor tornava-se facilmente o meu maior alvo. Lojas, restaurantes, sorveterias, hotéis, carros, ruas, bares, prostitutas. Eu estava roubando como um louco e nunca tinha medo de ser apanhado. Eu estava pouco me fodendo pra realidade. Eu só queria o meu paraíso.

Todo dia era uma corrida contra o tempo. Quanto mais cedo eu fosse atrás do dinheiro, mais cedo eu teria o meu paraíso. Portanto, não preciso dizer que não durmo há dias. Não como há semanas. Água, talvez, só da chuva. Eu estava no inferno. Eu continuo no inferno. Mas somente agora tudo isso faz sentido.

Aqui, nessa viela, acabei de usar a minha última dose. Não faço ideia de que horas são pois também empenhorei o meu relógio antigo. Tudo em nome do meu paraíso. Tudo pra poder lhe dizer o quão o paraíso pode ser alucinante, trágico e infernal.


Eu me dei conta de que tudo que eu tinha nessa vida se foi como uma chuva de verão. Tudo está morto e acabado. Aos que eu tinha amor, eu não sinto nada. Aos que me amaram, não sei o que lhes foi feito. Estou só numa loucura que eu mesmo me pus. Uma dose que era única, uma dose que era a última. Mas nunca foi.

A única dose é sempre a passagem pra oficina do diabo. Se quiser visitar o paraíso, estarei te esperando. Talvez não mais vivo mas com a certeza de que você também irá parar, algum dia, numa viela como essa a que me encontro agora. Sem ter casa pra voltar, sem ter um abraço pra te acalentar. Nesse inferno fantasiado de paraíso, é você contra você. É você por você. E você sempre perde pra você mesmo. 

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