6/04/2014

A crônica existencial e mortal de Ana Porto. (Parte I)

Tudo aconteceu muito rápido. Em um momento tudo estava normal, como em todos os dias até então e de uma hora para outra senti uma forte dor se alastrando por todo o meu corpo. Não era uma dor simples, dessas que se curam com aspirina. A dor era intensa e a cada segundo que passava, ela aumentava gradualmente. Essa dor atingiu um nível que nenhuma outra dor que eu houvesse sentido até hoje pôde atingir. E essa dor era diferente por que, com o tempo, as dores “comuns” iriam regressar em algum momento. E essa, teimosa que era, insistia em aumentar. E atingiu um nível tão alto que meu corpo não aguento e eu perdi os sentidos. Acontecia devagar e rápido ao mesmo tempo. Os meus olhos se fechavam sem que eu quisesse e eu já não tinha mais controle sobre o meu corpo.

Acordei com uma luz forte bem em cima da minha cabeça. Meus olhos iam se adaptando aos poucos ao ambiente e àquela claridade evasiva enquanto a mente processava aonde eu estava. Quando pude, enfim, ter um pouco mais de foco, me deparei com alguns familiares em uma pequena saleta. Eu sabia que estava em um hospital mas eu ainda não entendia o motivo. Tudo bem, eu senti uma dor. Uma dor forte e incomum mas seria mesmo necessário ir ao hospital? Não perguntei, afinal o rosto daqueles que eu conhecia denunciavam tudo: aquele era o lugar onde eu deveria estar. E eu não sabia o por que. Ou não queria saber.

Minha mãe foi a primeira pessoa que eu vi ao abrir os olhos. Ela não tinha visto que eu acordara e estava com as mãos entrelaçadas uma na outra e seus olhos baixos enquanto seus lábios murmuravam algo que eu não conseguia ouvir. Ela estava rezando. E aquilo me deu um pouco de medo. Lembro-me que minha mãe sempre rezava antes de dormir para agradecer o dia mas aquilo era diferente, como se estivesse pedindo ajuda a Deus – se é que eu acredito mesmo que ele exista – em alguma coisa. Quando seus olhos, marejados e avermelhados, encontraram os meus, ela sorriu. Mas era um sorriso triste e forçado, como quem diz que as coisas vão bem quando sabemos que não está.

Aos poucos eu ficara rodeada de rostos conhecidos e amáveis por mim, sorri uma vez ou duas antes de conseguir falar alguma coisa. Apesar de agradecer por todos aqueles que eu amo estarem ali, eles estavam me sufocando e me deixando sem graça. Eu nunca fui do tipo que gostava de atenção e atenção era tudo que eu tinha ali. Alguém perguntou alguma coisa, percebi pela intonação mas eu não consegui absorver as palavras ou formular a frase. Meus olhos estavam se fechando de novo e a última coisa que lembro foi minha mãe gritar por ajuda.

Não sei quanto tempo havia apagado mas percebi que estava ficando mais comum do que eu poderia pensar. Nunca antes havia sofrido um desmaio e sempre quis saber a sensação do mesmo, me desiludindo quando sofri o primeiro e o segundo, rezando para que aquilo parasse imediatamente. Desmaiar não era tão legal quanto eu imaginava que fosse.

Acordei e as luzes estavam mais fracas, conseguia ouvir apenas dois sons naquele ambiente: o relógio de pulso da minha mãe e uma máquina ao meu lado que parecia irradiar sons estranhos e cronometrados. Era o som que um cardiograma faz. Achei legal, sempre quis ver um cardiograma de perto mas logo caí na real e pensei que algo estava muito errado para eu estar aqui precisando ser monitorada.

Me mexi um pouco pra ver se alguém prestava atenção. Dois pares de olhos pairaram sobre mim: minha mãe e minha avó. Abruptamente ambas pararam ao lado da minha maca e cada uma pegou uma das minhas mãos. Vovó, ao lado direito, sussurrava uma oração – uma coisa típica dela e que eu já não achava mais estranho – e ao lado esquerdo, mamãe. Sorri fraco, meu corpo ainda não permitia algo forte, nem mesmo uma expressão simples como um sorriso.

- O que aconteceu? – Perguntei, tentando me ajeitar na maca.
- Você sofreu um desmaio. Ou dois. Como você está se sentindo? – Mamãe perguntou-me
- Eu não sei, me sinto um pouco cansada e fraca. Como quem dormiu o dia inteiro, acordou a noite e dormiu um pouco mais. Só cansaço, sabe? – Dei de ombros.

Ela sorriu e afagou minha mão.

- Mãe, o que realmente aconteceu?
- Ainda é cedo pra saber, filha. O médico ainda não nos deu um diagnóstico exato. Estamos esperando por uma resposta.
- Mas ele disse algo, não disse?
- Não, ainda não. – Ela suspirou. – Ainda não sabemos. – Sorriu falso.


Minha mãe nunca soube mas sempre sei quando ela mente pra mim. Não é como todas as outras pessoas com quem eu convivo. Minha mãe é uma boa mentirosa. Uma excelente, eu diria, mas depois de tantos anos pegando algumas mentiras no ar e fazendo-a contradizer-se, as mentiras dela ficaram muito mais fáceis de serem lidas por mim. Ela como olhar o céu numa noite nublada e ter certeza que há inúmeras estrelas por trás de todas aquelas nuvens.

Alguém bateu a porta e entrou, não precisou de convite e imaginei que fosse alguém conhecido. E quanto mais ele se aproximava, mais seu rosto me era desconhecido. Seu jaleco denunciava seu nome, bordado num azul claro, com um “Dr.” a frente . O bendito que estava esperando para poder ir pra casa.

- Olá, Ana, como vai? – Ele lia sua prancheta enquanto falava comigo.
- Eu estou bem, só um pouco cansada. – Dei de ombros e lhe lancei um sorriso.

Ele continuava a ler sua prancheta e sua expressão ficava pior a cada linha. Tentei me suspender um pouco e ler o que estava escrito ali mas era algo impossível estando deitada. Ele, por fim, deu uma batidinha na prancheta e a deixou ao lado da cama, virada de cabeça para baixo. Era normal aquilo ou ele apenas deixou por deixar, sem pretensão alguma?

- Bom, querida... – Ele dizia enquanto sentava na beirada da minha maca a tomava minha mão para um afago desconsertante. – A verdade é que eu não tenho notícias muito boas.
- Certo, pode falar. – Eu disse.
- Você tem Leucemia Mieloide Crônica. – Ele fez uma pequena pausa pra poder observar minha reação que, até então, não mudara. – E essa Leucemia está em crise blástica. A crise blástica é o último estágio desse tipo de Leucemia, com uma progressão rápida e com um curto tempo de vida.

Minha mãe explodiu do outro lado da sala. O seu choro era alto e os soluços interrompiam meus pensamentos. A minha avó tentava abraça-la numa forma de conforto e conforta-la, também. Aquela era a pior cena que eu já havia visto e apenas aquilo me trouxe um ardor na garganta, o choro pronto pra sair. Respirei e virei para o médico a minha frente. Ele ainda afagava minha mão. Pensei se ele fazia aquele tipo de coisa com as pessoas que estavam ali ou era apenas com aquelas que estavam perto de morrer, como eu.

- Não existe mais um tratamento? – Eu quis saber. – Digo, só vou ficar aqui e morrer?
- Eu não quero lhe dar falsas esperanças, tudo bem? – Ele começou. – Você pode fazer quimioterapia mas apenas isso não adiantaria, depois de algum tempo fazendo quimioterapia e observando se haveria melhoria, você poderia fazer um transplante de medula óssea.
- Se eu sobreviver a quimioterapia poderei fazer o transplante e tudo voltará ao normal? – Quis saber.
- Talvez, mas como eu disse: não quero te dar falsas esperanças. As chances que a quimioterapia funcione não são tão boas quanto eu gostaria que fosse. Seu avanço é quase que nunca visto pela Medicina, geralmente pacientes que tem Leucemia Mieloide Crônica chegam aqui na fase crônica, o primeiro estágio, e é mais fácil de ser tratado do que o estágio em que você se encontra.

Minha mente girava com todas as informações me passada. Tudo era novo. E tudo me doía. O sofrimento da minha mãe e da minha avó naquele micro-quatro, o Doutor Rogério que não sabia o que fazer com suas mãos, aquele cardiograma que não fazia sentido estar ali ou eu precisar dele no estado em que eu me encontrava. Quis perguntar mas o choro da minha mãe era alto e Doutor Rogério deu um leve tapinha na minha mão, mencionando sua saída.


Minha mãe atravessou o quarto em passos largos e apressados e me tomou em um abraço forte e desesperado, pela primeira vez, até então, eu pude sentir as lágrimas rolarem sobre meu rosto. Minha avó estava próxima e eu estendi o braço para que ela também pudesse me abraçar. Ficamos ali, toda a geração de mulheres por mim conhecidas naquela família, abraçadas uma com as outras enquanto soluços tomavam conta do ambiente. 

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