Tudo
aconteceu muito rápido. Em um momento tudo estava normal, como em todos os dias
até então e de uma hora para outra senti uma forte dor se alastrando por todo o
meu corpo. Não era uma dor simples, dessas que se curam com aspirina. A dor era
intensa e a cada segundo que passava, ela aumentava gradualmente. Essa dor
atingiu um nível que nenhuma outra dor que eu houvesse sentido até hoje pôde
atingir. E essa dor era diferente por que, com o tempo, as dores “comuns” iriam
regressar em algum momento. E essa, teimosa que era, insistia em aumentar. E
atingiu um nível tão alto que meu corpo não aguento e eu perdi os sentidos.
Acontecia devagar e rápido ao mesmo tempo. Os meus olhos se fechavam sem que eu
quisesse e eu já não tinha mais controle sobre o meu corpo.
Acordei com
uma luz forte bem em cima da minha cabeça. Meus olhos iam se adaptando aos
poucos ao ambiente e àquela claridade evasiva enquanto a mente processava aonde
eu estava. Quando pude, enfim, ter um pouco mais de foco, me deparei com alguns
familiares em uma pequena saleta. Eu sabia que estava em um hospital mas eu
ainda não entendia o motivo. Tudo bem, eu senti uma dor. Uma dor forte e
incomum mas seria mesmo necessário ir ao hospital? Não perguntei, afinal o
rosto daqueles que eu conhecia denunciavam tudo: aquele era o lugar onde eu
deveria estar. E eu não sabia o por que. Ou não queria saber.
Minha mãe foi
a primeira pessoa que eu vi ao abrir os olhos. Ela não tinha visto que eu
acordara e estava com as mãos entrelaçadas uma na outra e seus olhos baixos
enquanto seus lábios murmuravam algo que eu não conseguia ouvir. Ela estava
rezando. E aquilo me deu um pouco de medo. Lembro-me que minha mãe sempre
rezava antes de dormir para agradecer o dia mas aquilo era diferente, como se
estivesse pedindo ajuda a Deus – se é que eu acredito mesmo que ele exista – em
alguma coisa. Quando seus olhos, marejados e avermelhados, encontraram os meus,
ela sorriu. Mas era um sorriso triste e forçado, como quem diz que as coisas
vão bem quando sabemos que não está.
Aos poucos eu
ficara rodeada de rostos conhecidos e amáveis por mim, sorri uma vez ou duas
antes de conseguir falar alguma coisa. Apesar de agradecer por todos aqueles
que eu amo estarem ali, eles estavam me sufocando e me deixando sem graça. Eu
nunca fui do tipo que gostava de atenção e atenção era tudo que eu tinha ali.
Alguém perguntou alguma coisa, percebi pela intonação mas eu não consegui
absorver as palavras ou formular a frase. Meus olhos estavam se fechando de
novo e a última coisa que lembro foi minha mãe gritar por ajuda.
Não sei
quanto tempo havia apagado mas percebi que estava ficando mais comum do que eu
poderia pensar. Nunca antes havia sofrido um desmaio e sempre quis saber a
sensação do mesmo, me desiludindo quando sofri o primeiro e o segundo, rezando
para que aquilo parasse imediatamente. Desmaiar não era tão legal quanto eu
imaginava que fosse.
Acordei e as
luzes estavam mais fracas, conseguia ouvir apenas dois sons naquele ambiente: o
relógio de pulso da minha mãe e uma máquina ao meu lado que parecia irradiar
sons estranhos e cronometrados. Era o som que um cardiograma faz. Achei legal,
sempre quis ver um cardiograma de perto mas logo caí na real e pensei que algo
estava muito errado para eu estar aqui precisando ser monitorada.
Me mexi um
pouco pra ver se alguém prestava atenção. Dois pares de olhos pairaram sobre
mim: minha mãe e minha avó. Abruptamente ambas pararam ao lado da minha maca e
cada uma pegou uma das minhas mãos. Vovó, ao lado direito, sussurrava uma
oração – uma coisa típica dela e que eu já não achava mais estranho – e ao lado
esquerdo, mamãe. Sorri fraco, meu corpo ainda não permitia algo forte, nem
mesmo uma expressão simples como um sorriso.
- O que
aconteceu? – Perguntei, tentando me ajeitar na maca.
- Você sofreu
um desmaio. Ou dois. Como você está se sentindo? – Mamãe perguntou-me
- Eu não sei,
me sinto um pouco cansada e fraca. Como quem dormiu o dia inteiro, acordou a
noite e dormiu um pouco mais. Só cansaço, sabe? – Dei de ombros.
Ela sorriu e
afagou minha mão.
- Mãe, o que
realmente aconteceu?
- Ainda é
cedo pra saber, filha. O médico ainda não nos deu um diagnóstico exato. Estamos
esperando por uma resposta.
- Mas ele
disse algo, não disse?
- Não, ainda
não. – Ela suspirou. – Ainda não sabemos. – Sorriu falso.
Minha mãe
nunca soube mas sempre sei quando ela mente pra mim. Não é como todas as outras
pessoas com quem eu convivo. Minha mãe é uma boa mentirosa. Uma excelente, eu
diria, mas depois de tantos anos pegando algumas mentiras no ar e fazendo-a
contradizer-se, as mentiras dela ficaram muito mais fáceis de serem lidas por
mim. Ela como olhar o céu numa noite nublada e ter certeza que há inúmeras
estrelas por trás de todas aquelas nuvens.
Alguém bateu
a porta e entrou, não precisou de convite e imaginei que fosse alguém
conhecido. E quanto mais ele se aproximava, mais seu rosto me era desconhecido.
Seu jaleco denunciava seu nome, bordado num azul claro, com um “Dr.” a frente .
O bendito que estava esperando para poder ir pra casa.
- Olá, Ana,
como vai? – Ele lia sua prancheta enquanto falava comigo.
- Eu estou
bem, só um pouco cansada. – Dei de ombros e lhe lancei um sorriso.
Ele
continuava a ler sua prancheta e sua expressão ficava pior a cada linha. Tentei
me suspender um pouco e ler o que estava escrito ali mas era algo impossível
estando deitada. Ele, por fim, deu uma batidinha na prancheta e a deixou ao
lado da cama, virada de cabeça para baixo. Era normal aquilo ou ele apenas
deixou por deixar, sem pretensão alguma?
- Bom,
querida... – Ele dizia enquanto sentava na beirada da minha maca a tomava minha
mão para um afago desconsertante. – A verdade é que eu não tenho notícias muito
boas.
- Certo, pode
falar. – Eu disse.
- Você tem
Leucemia Mieloide Crônica. – Ele fez uma pequena pausa pra poder observar minha
reação que, até então, não mudara. – E essa Leucemia está em crise blástica. A
crise blástica é o último estágio desse tipo de Leucemia, com uma progressão
rápida e com um curto tempo de vida.
Minha mãe
explodiu do outro lado da sala. O seu choro era alto e os soluços interrompiam
meus pensamentos. A minha avó tentava abraça-la numa forma de conforto e
conforta-la, também. Aquela era a pior cena que eu já havia visto e apenas
aquilo me trouxe um ardor na garganta, o choro pronto pra sair. Respirei e
virei para o médico a minha frente. Ele ainda afagava minha mão. Pensei se ele
fazia aquele tipo de coisa com as pessoas que estavam ali ou era apenas com
aquelas que estavam perto de morrer, como eu.
- Não existe
mais um tratamento? – Eu quis saber. – Digo, só vou ficar aqui e morrer?
- Eu não
quero lhe dar falsas esperanças, tudo bem? – Ele começou. – Você pode fazer
quimioterapia mas apenas isso não adiantaria, depois de algum tempo fazendo
quimioterapia e observando se haveria melhoria, você poderia fazer um transplante
de medula óssea.
- Se eu
sobreviver a quimioterapia poderei fazer o transplante e tudo voltará ao
normal? – Quis saber.
- Talvez, mas
como eu disse: não quero te dar falsas esperanças. As chances que a
quimioterapia funcione não são tão boas quanto eu gostaria que fosse. Seu
avanço é quase que nunca visto pela Medicina, geralmente pacientes que tem
Leucemia Mieloide Crônica chegam aqui na fase crônica, o primeiro estágio, e é
mais fácil de ser tratado do que o estágio em que você se encontra.
Minha mente
girava com todas as informações me passada. Tudo era novo. E tudo me doía. O
sofrimento da minha mãe e da minha avó naquele micro-quatro, o Doutor Rogério
que não sabia o que fazer com suas mãos, aquele cardiograma que não fazia
sentido estar ali ou eu precisar dele no estado em que eu me encontrava. Quis
perguntar mas o choro da minha mãe era alto e Doutor Rogério deu um leve
tapinha na minha mão, mencionando sua saída.
Minha mãe
atravessou o quarto em passos largos e apressados e me tomou em um abraço forte
e desesperado, pela primeira vez, até então, eu pude sentir as lágrimas rolarem
sobre meu rosto. Minha avó estava próxima e eu estendi o braço para que ela
também pudesse me abraçar. Ficamos ali, toda a geração de mulheres por mim
conhecidas naquela família, abraçadas uma com as outras enquanto soluços
tomavam conta do ambiente.
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