2/09/2013

A epidemia (Parte II)


Seus olhos eram de um verde cintilante que ofuscava qualquer outro par de olhos ali presente. Eu buscava encontrar outros olhos para me certificar de que não havia sido hipnotizado mas era vã. Eu estava completamente hipnotizado por aqueles olhos. Seu timbre entrou pelos meus ouvidos como melodia, pensei que houvesse música ao redor e ali fora o primeiro momento em que olhei ao redor para me certificar mas nada encontrei.

Suas mãos ainda estavam nas minhas, ajudando-me a levantar e a obter alguma espécie de equilíbrio do qual meu cérebro se recusa a criar, eu tonteava e mal conseguia me manter em pé. Sei que seus olhos são hipnotizantes mas algo me dizia que não era pela sua hipnose que eu estava tonto e atordoado em meio aquela pequena multidão que agora se dispersava. Eu sabia que algo havia acontecido, eu sabia que aquilo era algo grande por que, depois de muitos anos, eu sentia meu coração bater cheio de vida e esperança, como quando eu era humano.

Eu sentia frio, dor e um pequeno embrulho no estômago. Meu corpo me dava sinais de que algo ruim acontecera comigo e eu estava fraco, procurando ajuda para manter-me em pé pus as mãos em uma das imensas pilastras que ali haviam. Suas mãos, outra vez, pairaram sob a minha enquanto a mesma descansava na pilastra.

Eu queria entender todo aquele desconforto e emoção irracional que eu sentia que quase não me deixava pensar. Então, pela primeira vez, a olhei como um todo: um tênis azul bebê, um jeans escuro e surrado e um casaco de lã por cima de uma blusa preta de malha. Seu cabelo era envolvido com algum acessório que eu não reconhecia de cara. Não levava nada consigo, apenas mãos protetoras e olhares hipnotizantes.

- Acho que você precisa de ajuda. – Disse ela, apreensiva, enquanto  corria sua mão pelo meu braço e fazendo-me recostar na pilastra enquanto, quase que usando toda sua força, me fazia sentar.
- Eu estou... bem. – Eu arfava enquanto ia deslizando as costas na pilastra.
- Vou chamar um médico, tudo bem? – Ela virou-se para mim e tirou do bolso traseiro da calça um celular pequeno. – Qual o seu nome? – Perguntou enquanto virava-se pra mim.
- Eliel. Me chamo Eliel. – Eu disse enquanto via seu sorriso transparecer a face.
- Não, digo... sério. Seu nome. – Ela sorriu enquanto levava aquilo como uma brincadeira.
- Eliel. Eu me chamo Eliel!
- Você... se chama... Eliel? – Ela tapava a boca num tom de incredulidade enquanto deixava o celular deslizar por entre seus dedos, alcançando o chão quase que de imediato.

Ela sentou ao meu lado. Apreensiva como eu. Pegou o celular e o enfio de volta ao bolso traseiro. Eu não entendia o que tinha dito que a tivesse atordoado-a tanto assim. Ela me olhava incrédula ainda, como se eu fosse cometer um assassinato e ela fosse presenciar, não... como se eu fosse ser assassinado e ela a assina novata que ainda não descobriu sua paixão pela morte.

- Você é um anjo caído? – Ela perguntou e vi seus lábios tremerem ao dizer anjo caído.
Eu não tive uma resposta de imediata. Eu sabia que eu fazia parte dos anjos, mas nunca soube se eu estivera entre os caídos ou não. Mas de uma coisa eu tinha certeza: ela sabia sobre nós anjos, caídos ou não. E isso fez com que minha espinha sentisse um calafrio por dentro e vi que os pêlos do meu braço se enrijeceram.
- Você sabe sobre os anjos? – Eu sussurrava cada palavra para que ouvidos humanos não pudessem capturar nenhuma palavra da conversa.
- Sim. Sei. Você é um caído? Você... não pode ser. – Ela tapou seus olhos com as mãos enquanto trazia consigo suas pernas e envolvia sua cabeça entre elas, numa tentativa súbita de afogar suas lágrimas para que eu não as visse.
- Por que você está chorando? Por que eu não posso ser? O que você sabe? – Eu esperei um tempo, enchendo os pulmões de ar e esperando uma resposta.
- Se você for um anjo caído eu estou ferrada! Entende isso? Eu estou ferrada! – Ela falava entre soluços.
- Eu não sei se sou. Sou um anjo, sim. Mas sou um cupido. Eu não sei sobre os caídos, nenhum arcanjo me informou a respeito. Por que você estaria ferrada se eu, por acaso, fosse um dos caídos? – Eu a indaguei enquanto pousava uma das minhas mãos sob minha perna esticada.
- Não sabe sobre os caídos? – Ela levantava a cabeça com seu rosto incrédulo, como se eu tivesse cometido um pecado. – Ninguém lhe contou sobre os caídos? Quero dizer, eles são muito maus. – Ela limpou uma das lágrimas que ainda percorria seu lindo rosto angelical.
- Você não é um anjo. – Eu afirmei. – Eu saberia se você fosse.
- Eu sou, Eliel. Sou um anjo da morte. Em seu caso, especificamente, sou um anjo da vida.
- O que você quer dizer? Você não pode ser... não pode! Eu sentiria, eu saberia. Por que está mentindo? – Eu não conseguia ver meu rosto mas apostaria que minha fúria estava exposta ali.
- Veja bem: você é um cupido. Ou era. Até então, eu não sabia. Assim que lhe vi entre milhares de pessoas, achei que fosse um dos caídos. Quando vi a flecha subir e descer e depois acertá-lo bem no peito, achei que tivesse morrido. Acredite, anjos caídos só podem ser mortos por uma das flechas de um anjo cupido. – Ela fez uma pausa para ver minha expressão mas continuou assim mesmo – E então quando eu cheguei aqui e vi você acordar e senti o seu coração bater eu vi que você tinha tornado-se humano. – Ela suspirou. – A parte triste é que me mandaram aqui para que eu me tornasse teu anjo, para que pudéssemos ser um pertencente ao outro. Eles liberariam você de sentir, os arcanjos lhe deram passe livre para sentir se fosse eu o anjo escolhido. Eu só precisava chegar um pouco mais cedo. Você cometeu suicídio angelical. Isso é pior do que aparenta. Você vai ser humano, outra vez. – E de novo, ela caiu em lágrimas.

Enquanto eu associava aquelas coisas que ela me dizia não pude conter o sorriso que estampava o meu rosto. Eu pensei em todas as coisas que perdi enquanto estive a trabalho na Terra, caçando corações partidos para que pudessem unir-se a outros e agora era minha vez de ter o meu coração unido a um outro. Eu estava feliz mas não entendia a tristeza daquele anjo da morte ao meu lado. O trabalho dela é ser forte. E quanto aos arcanjos: por que me liberariam de sentir algo? Por que me liberariam de sentir algo justamente por um anjo da morte, aquilo que eu, mesmo quando cupido, sentia o estômago apertar de enjoou? Eu não queria me apaixonar por um anjo da morte.

- Eu não sei o seu nome. – Eu disse, antes de começar um seqüência de perguntas.
- Ive. Me chamo Ive. – Ela não me olhou.
- Bem, Ive, tenho perguntas. Muitas! – Eu encarei os milhares de pares de pernas que andavam um a favor dos outros, um contra os outros, uns esbarrando-se nos outros e a medida que ia levantando podia ver suas faces espalhadas. Estendi a mão para Ive e ela a tomou, levantando-se de imediato.
- Eu quero respostas, Ive, mas não quero que as pessoas saibam sobre o que iremos conversar. Conheço um lugar perto onde é calmo e podemos ter essa conversa.
- Tudo bem. – Ela suspirou, como quem acabara de perder uma batalha.

Enquanto caminhávamos ao longo da avenida até a praça central não dissemos uma palavra ao outro. Minha cabeça rodopiava e eu tinha milhares de perguntas e acerto de contas. Eu queria cuspir palavras mas ao mesmo tempo eu queria afagar seu rosto e abraçá-la. Era totalmente estranho esse sentimento de proteção para com ela mas eu o sentia mesmo assim, como se eu fosse uma espécie de protetor. Mas anjos da morte não precisam de proteção, quem está com eles é que precisam. Mas eu não sentia que precisava de proteção.

Enquanto chegávamos a pequena praça central do parque aquático aberto ao público, embora fosse época de frente fria e poucas pessoas ali estavam, avistamos um banco e aquilo, naquele momento, era o mais reconfortante que eu  poderia querer para uma conversa, como posso dizer? Assustadora? Amedrontadora? Não... para uma conversa definitiva.

- Tudo bem, estamos aqui. Segui você até aqui e apenas porque tenho uma curiosidade fascinante por sua mente brilhante. Diga-me, Eliel, o que lhe assombra? – Seu aspecto mudou, sua voz mudou e até o comportamento mudara desde que estivemos na estação de metrô.
- Primeiro, quero saber: ao atirar minha flecha sem direção exata e ter me acertado, eu morri? – Comecei com as mais simples que vinham em mente.
- Não. Você está vivo. Muito, até! A única coisa que aconteceu foi que deixaste de ser um anjo cupido e voltara a ser humano. Os arcanjos não contam isso para nenhum anjo cupido, caso contrário, todos tentariam suicídio angelical e voltariam a ser humanos. Afinal, deve ser horrível não sentir nenhuma emoção.

Analisei-a por um momento. Afinal, deve ser horrível não sentir nenhuma emoção. Suas palavras vagavam em minha mente como um eco. Deve ser horrível? Como assim? É horrível. Aposto que você sabe disso. Você não sente, também!

- Deve ser horrível? – E meus pensamentos se transformavam em palavras.
- Anjos da morte podem sentir. São os únicos. Eu sinto dor, náuseas e fome. Eu também sou capaz de amar, ainda. Não é porque meu trabalho é desfalecer corações que eu não possa ter um.
- Certo. – Estive afirmando mais para mim do que para ela. – E os arcanjos, o que eles tem a ver com toda essa loucura? E porque quando eu acordei eu não conseguia parar de olhar pra você?
- Você estava predestinado a se apaixonar por mim. Um cupido sendo alvo de um outro cupido, seria engraçado se não fosse tão trágico. Você, momentos antes de cometer o tal suicídio angelical, foi atingido por uma das flechas de Dira, uma dos anjos cupidos recém chegadas. Você deveria sentir amor pelo anjo mais próximo a você, que era eu. Os arcanjos sentiram sua dor, digamos assim. Sei que você não sentia. Mas eles viram suas lágrimas, sabiam que sentia falta de sentir amor e de ter um amor. E eu, não muito longe disso, implorava por uma aceitação dos arcanjos para que eu fosse capaz de amar alguém. E era você.

Minha mente girava, as palavras que sopravam da boca dela não poderiam ser reais. Eu me sentia traído, ignorado e inútil mas ao mesmo tempo me sentia abençoado pelos arcanjos tentarem me fazer um anjo cupido mais feliz, em meus tempos de trabalho.

- Quer dizer que eu...? – Eu ainda não havia formulado uma pergunta coerente e ela já tinha sua resposta.
- Quando não aconteceu quando você era um anjo cupido, aconteceu quando se tornou humano. Você se apaixonou por mim. Sei que sente uma vontade inenarrável de me abraçar e me manter protegida, sabe-se lá de que. O problema em questão é que anjos da morte são proibidos de se apaixonarem por humanos. Enquanto via você sendo atingido pela sua própria flecha, eu o amava. Agora, não sinto nada. Essa é uma das piores coisas que os arcanjos podem fazer conosco: tirar nossos amores assim que eles tornam-se humanos.
- O que você quer dizer é que jamais poderá se apaixonar por mim mas eu levarei esse amor por você durante toda a minha existência em Terra? – Meu estômago embrulhava.
- Isso. – Ela assentiu com a cabeça. – Você está preso nesse amor por mim. O mais difícil é que eu sei, quero corresponde-lo mas não posso. É como se eles, os arcanjos, tomassem meu coração em mãos e o esmagasse. Eu não sinto nada por você. – E sua voz pareceu sinceramente triste.
- Estou apaixonado por um anjo da morte. – Disse, enquanto tentava fazer aquilo não parecer psicótico demais, mesmo que para mim. – Mas, me diga uma coisa – Eu continuei – Se eu fosse um anjo caído, por que você estaria ferrada?

Ela engoliu em seco enquanto fitava as margens do pequeno lago que estava a nossa frente. Com a frente fria instalada e o vento soprando quase que a cada segundo, o lago remexia-se e contorcia-se, por um momento eu me senti como aquele lago: dolorido e cansado de que tocassem em mim sem que eu pudesse fazer nada.

- Se por ventura do destino você fosse um caído, eu estaria morta. Um anjo caído é pior do que um anjo da morte porque eles não tem leis ou regras. Eles fazem o que bem entendem, eles simplesmente jogam o jogo que decidirem jogar. Caídos odeiam anjos da morte porque somos nós os seus juízes, somos nós quem decidimos se eles devem deixar nosso paraíso ou permanecer. Se você fosse um deles você me odiaria. Todos os caídos odeiam-me e a todos os outros anjos da morte, também. Esse é o único poder supremo que temos, nisso nem os arcanjos interferem. Só nós podemos decidir quem fica e quem caí. – Ela suspirou.
- E como isso funciona? Quero dizer, por qual motivo você acha que um anjo deve ser retirado do paraíso? – Eu arquejava.
- Na maioria das vezes por arrancarem suas asas ou se tentarem se apaixonar por humanos, no caso de alguns ex-anjos da morte. Algumas vezes eu os retiro porque eles ainda sentem. Meio humanos e meio anjos. O amor que sentem por alguém na Terra é tão forte que isso não cessa quando tornam-se anjos.
- Entendi. Então, se eu fosse um caído eu te odiaria agora ao invés de ama-la?
- Sim, você me odiaria. Você tentaria me matar. Você é muito mais forte do que eu e se acaso fosse um caído, me mataria sem duvidas aparentes.
- Você me falou que os caídos só podem ser mortos pelos cupidos. Mas e sua raça? E os anjos da morte? Não matam ninguém?
- Nossa missão não é matar nossa espécie, é desfalecer os humanos. Nossa missão é dar a passagem do mundo terráqueo ao mundo angelical, algumas vezes ao mundo infernal, e não temos poder absoluto para matar nenhum da nossa raça ou espécie, como eu disse: tudo que fazemos de ruim além de levar pessoas é julgar um anjo para que ele torne-se caído ou não.

Era muita coisa a assimilar. Eu não era mais um anjo cupido. Eu era humano. Eu era um humano apaixonado por um anjo da morte que, por ventura do destino, poderia tirar minha vida a qualquer momento agora que sabia que minha maior fraqueza era ela. Eu estava na Terra sem missões, além de viver como todos os outros humanos. Os arcanjos mentiram para mim durante meu tempo de trabalho e isso estava rasgando-me por dentro. Muita coisa naquele momento estava me machucando. Eu amava alguém que jamais poderia me amar algum dia. Eu amava alguém que era capaz de me matar. Mas nada disso era mais preocupante do que a seguinte situação: anjos caídos com certeza estavam atrás de Ive. Eu poderia suportar uma vida sem que ela me desse o amor que eu queria, era aceitável mas não menos doloroso por isso mas saber que ela era alvo de milhares de anjos caídos me faziam construir uma neblina de pensamentos ruins.

Seus olhos doces e quase frágeis me lembravam a alguém. Eu sabia que estava apaixonado por ela, por isso a forte impressão de conhecê-la assim que eu acordei em meio ao metrô mas não era só isso. Havia mais. Eu a conhecia, sim. Antes de tudo. Antes de anjos atravessarem nosso caminho. Antes de qualquer coisa acontecer conosco. Eu a amava antes, era isso. Quando humano, antes de me tornar um anjo cupido, éramos um casal. E agora tudo iniciara de novo, de uma forma mais dolorosa e impassível mas ainda era aquele amor. Meu coração acelerou forte e meus olhos caíram sob o chão. Eu a amava antes, eu a amo agora. Minha salvação e meu fim. 

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