11/25/2011

A salvação dos anjos.

- Para de fumar menina, isso vai acabar com os seus pulmões. - Disse um rapaz que usava um gorro vermelho, extremamente feio para a ocasião.
- Te incomoda a fumaça? - Eu perguntei não me importando com a resposta.
- Não, mas isso vai te matar. - Ele disse, enquanto se aproximava mais um pouco.
- Já estou morta por dentro, meu senhor. - Fitava o horizonte nesse instante.
- Nunca morri por dentro e continue vivendo. Como é? - Ele sorriu de lado.
- Experimente se jogar da sacada dessa varanda. Bom, aqui há uns 18 metros, talvez? Imagine-se caindo no chão e quebrando todos os seus ossos, imagine que seus órgãos foram todos expostos...
- Mas é impossível todos os órgãos serem expostos. - Incrédulo, ele disse, pronto para me atacar com as palavras.
- É uma suposição, meu caro. Apenas imagine. Agora imagine que você sobreviveu mas que a dor daquelas fraturas expostas continuaram. E você precisa continuar a viver segurando seus órgãos. Entende? - Agora eu olhava a expressão do rapaz, então um enigma se formou em seu rosto, não entendendo nada do que eu queria dizer.
- Não muito, mas continue. - Ele pôs o cotovelo apoiado na sacada da varanda.
- Vou exemplificar. Vamos supor que você quebrou alguma parte do corpo e o osso ficou exposto. Vamos supor que não se possa coloca-lo de volta ao lugar e não existe morfina para aliviar a dor. É isso, basicamente isso, que é morrer por dentro. - Eu franzi os lábios.
- Você me parece sofrida, como quem não espera mais milagres, como quem arrasta os dias ao invés de vive-los. - Ele rodopiou e parou de costas para a sacada.
- Acho que você entendeu. - Eu rodopiei, também.
- Mas, me diga, qual seria o motivo dessa morte trágica da sua alma? - Ele mantinha a cabeça baixa, uma voz passiva, como se fosse um pai que acabara de perder suas armas para defender um filho.
- Outras pessoas mortas por dentro causam isso em pessoas vivas. Quero dizer, é meio contagioso, sabe? É como se eu, que estou morta por dentro, precisasse apenas de algumas horas, ou dias, para faze-lo morrer por dentro. - Dei uma tragada no cigarro. A fumaça seguia para o sul, voltando todo em minha face, o que me fez fechar os olhos e torcer o nariz. Ele riu.
- Você sofre de amor não correspondido, menina. E isso não é motivo para morrer, acredite. Pensando bem, já morri uma vez, assim como você. - Ele continuava sorrindo.
- Me parece bastante vivo agora. O que aconteceu? Ressuscitou? - Eu dei uma risada abafada.
- Mais ou menos isso. Quando a gente morre, como eu morri e como você está morta por dentro, a gente se traca em si mesmo. É uma pena. Por conta dessa trágica morte, a gente quase nunca percebe as coisas ao redor. - Ele deu outro rodopio e pôs as mãos entrelaçadas para fora da sacada.
- O que quer dizer com isso? - Eu franzi a testa.
- A sua esquerda, o rapaz de camisa pólo branca não para de te olhar desde que eu me aproximei. Achei que fosse seu acompanhante no início, mas se fosse já teria vindo saber o que eu tanto converso com você. - Ele levantou um pouco a cabeça e depois estralou o pescoço.
- Aquele cara? - Eu abaixei a cabeça, a voz quase não saia. - Ele morreu, também. Na verdade é a pessoa mais morta por dentro que eu conheço. Tem o dom de fazer as pessoas a sua volta morrer junto com ele e depois se afastarem. Ele me matou.
- Qual é? - ele virou o rosto pra mim e riu. - Ele não me parece ter nada de especial assim.
- E não tem, de fato. - Eu rodopiei e pus as mãos, também entrelaçadas, para fora da sacada. - O problema é que ele parece vivo, parece que trás vida para as pessoas. E eu, inocente, caí nessa e acabei me afundando.
- Ele só era o cara errado. Se me permite dizer, não podemos morrer por quem já está morto. Tudo o que podemos fazer é rezar para que sua alma não se perca no purgatório. - Ele apoiou sua mão esquerda na minha mão direita. Eu olhei, mas não recuei. Sua mão era quente, diferente do ar que pairava naquela sacada. Mas ao redor, tudo de repente pareceu lento demais aos meus olhos.
- Talvez você seja um anjo. Talvez você tenha sido enviado para me salvar da morte. E eu não sei nem o seu nome. - Com a mão esquerda eu tirei a franja dos meus olhos e o olhei nos olhos.
- Eu me chamo Gabriel. Engraçado, né? Nome de anjo mesmo. Talvez eu seja, mas talvez seja apenas um desconhecido que queria te alertar sobre seus pulmões que recentemente irão ficar podres, se não já estão. - Ele riu, enquanto se contorcia e colocava meu cabelo para trás com a mão direita.
- Pouco me importo com isso agora. Só queria mesmo era ser salva, e acho que você fez o seu papel por aqui. - Eu sorri. - A propósito, me chamo Maria.
- Eu já sabia o seu nome. - Ele abaixou a cabeça e sorriu de lado, outra vez.
- Como? - Eu ergui a sobrancelha.
- O rapaz de camisa pólo branca. Eu perguntei. Ele é o dono da festa, e eu sou apenas um convidado de um convidado que sumiu há horas. Não conheço ninguém, achei que também não conhecesse, por isso vim até aqui. - Ele olhou em meus olhos, depois abaixou a cabeça.
- Então gosta de conversar com estranhos? - Eu sorri de lado.
- Não. Detesto, na verdade. Mas tinha algo em você que era muito atrativo. Eu não sei explicar, parece que eu te conhecia de algum lugar. Dos meus sonhos, talvez. - Ele tomou uma expressão séria.
- Essa cantada é tão horrível quanto um bar lotado de motoqueiros. - Eu ri.
- Não estou te cantando. Na verdade, não era pra ser uma cantada. Eu apenas, bom, eu apenas te vi nos meus sonhos uma vez. Depois te vi andando na rua e achei que fosse alguém que eu conhecia. Mas você sumiu em uma viela. Não era você, era sua alma vagando pela cidade. E eu, tolo anjo, fui atrás. - Ele sorriu.
- Bom, me parece que você correu atrás da alma certa. Hoje ela está aqui, e adorou saber que havia um desconhecido atrás dela. - Eu entrelacei minha mão na dele.
- Eu te salvei! Eu mereço, no mínimo, um presente. - Ele apertou minha mão, não tão forte, mas firme, como quem não quisesse solta-la mais.
- Presente? - Eu sorri. - O que você quer? Um Porshe? Saiba que ainda nem saí da faculdade e estou mais dura que qualquer outra coisa.

Naquele instante, todos ao redor estavam preocupados demais consigo mesmo, querendo agradar a todos, a música ao fundo era seguida pela voz de John Lennon, quase não a reconheci por conta da porta de vidro abafando-a. Quando o rapaz de camisa pólo branca - o cara dono da festa, o cara que havia me matado - abriu a porta, fazendo a ranger feroz, pude ouvir Only You ao fundo. Agora todos dançavam descompassados, como se houvesse uma coreografia para tal música da qual todos haviam esquecidos. O rapaz de pólo branca inconstou na parede e acendeu um cigarro, fitava alguma coisa lá embaixo do qual eu não tinha menor interesse em saber.

Gabriel sorriu, se virou pra mim e ficou com um dos joelhos no chão e pegava a minha mão no ar. - Não quero seu dinheiro, sou seu salvador e jamais pediria algo do qual você não pudesse me dar. Essa noite eu me contento com uma dança. - Ele sorriu.
- Eu aceito essa dança. - Peguei sua mão e o fiz levantar.

Enquanto bailávamos pela grande sacada - agora pequena por conta do número de pessoas - as estrelas brilhavam no alto do céu, a lua era cheia. Apesar do barulho dos carros indo e vindo, não havia nada mais naquele momento além dele e eu. E dançamos a noite inteira. Dançamos eu e o meu salvador. Então olhei para o céu de uma forma generosa, como quem agradece por Deus ter feito algo bom. E fez. Então uma estrela correu o céu e eu fechei os olhos.

- Viu uma estrela cadente? - Ele apoiava as mãos na minha cintura.
- Sim. - Eu apoiava as mãos em seu ombro.
- O que pediu? - Ele sorriu, achando que eu não fosse dizer.
- Você! - Eu sorri.

Ele me beijou.

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